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Trilha em madeiras

O SÍTIO DE MINHA AVÓ

Ivana Lopes

                            Em quarentena em casa, apenas meu corpo. Minhas memórias viajam. Vão para um tempo muito feliz. Eu muito menina em meu vestidinho novo, sapatinhos novos também, esperando meus pais aprontarem as coisas. Final de semana no sítio de minha avó. Ah! Que maravilha, pensava eu, já me vendo descalça correndo por lá com meus primos e primas. Subindo nas árvores, conversando com as primas nos galhos das árvores. Haverá lugar melhor para se fazer uma reunião desse tipo? Eu acho que não. Mesmo naquele tempo quando eu nem sabia o que queria dizer reunião, não havia lugar melhor pra mim. O sítio de minha avó Augusta. Era mil vezes melhor do que qualquer Disney. Aliás nem sei se já havia uma naquela época. Não havia nada melhor do que correr livre, brincar na terra, me sujar inteira, ir com toda a criançada comer as frutas no pomar. Inesquecíveis as grandes mangas, lindas e maduras penduradas nos pés, as ponkans gigantes e amarelas, doces, esperando pela gente. E como eu amava as uvas japonesas, frutinhas esquisitas, de cachinhos secos e deliciosos, que eu só encontrava lá, no sítio de minha avó. E o que dizer das carambolas tão bonitas, que de tantas que eram, caiam pelo chão e se perdiam. Hoje tão caras e raras nos supermercados.
                            Tudo pronto, lá íamos nós para meu passeio favorito. A pequenina rodoviária em minha cidade, o ônibus, e enfim partíamos. Atravessávamos o centro, com seus prédios, eu da janela observando tudo. E aos poucos surgia a estrada, com árvores dos dois lados por todo o caminho. Posso sentir ainda o cheiro da terra molhada e das árvores, que entravam pelos vidros abertos do ônibus.

                            Finalmente descíamos e caminhávamos pela estradinha de terra, de longe meus primos vinham correndo e gritando: _ a prima da cidade chegou! Corríamos juntos então e de longe eu via minha avó na porta de sua casa, seus cabelos branquinhos presos em um coque, seu vestido marrom, e seu sorriso, as roseiras floridas em volta da casa. Naquele tempo eu era a única de suas netas que morava mais longe dali. Por isso a cada quinze dias ela me esperava. Uma vez ela me disse que assistia uma novela todos os dias pra me ver. Nela havia uma menina parecida comigo. A casa de minha avó de chão vermelho, com paredes feitas por meu avô, com a velha mangueira bem em frente, onde debaixo dela, outrora meu pai e meus tios se sentavam, tocavam instrumentos e cantavam nas noites de lua, tendo na plateia meus avós. A casa antiga com sua sala de tv, onde ela via o programa de Roberto Leal, que dançava O Vira, dança portuguesa. Minha avó era filha de portugueses e falava com tanto sotaque que parecia ela própria ter vindo de lá. Sua casa tinha um fogão a lenha, e posso garantir que não há cheiro melhor no mundo do que o da comida sendo feita num fogão à lenha. E então íamos todos para o quintal, para o grande espaço que era nosso, crianças e adultos se separavam e eu entrava então em meu sétimo céu. No meu pedaço de paraíso! 

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GALOS E QUINTAIS 

 Ivana Lopes

           Pleno 2021, século 21, teletrabalho, Pandemia de Covid, estou conectada em meu notebook. Todos estes termos atuais, desconhecidos nos séculos anteriores, perfeitamente condizentes com nossa realidade atual. De repente ouço um som. Um galo canta em alto e bom som, no quintal de algum vizinho, indiferente a todas as tecnologias. Um canto meio atrasado, diga-se de passagem, o sol já vai alto às 13 horas de uma tarde muito quente.

            O canto do galo, no entanto, me levou instantaneamente ao século 20, o simples som remeteu meu pensamento às memorias afetivas do final da infância, quase adolescência. Então fui transportada ao quintal de minha velha casa, com flores e árvores, de onde eu via minha mãe costurando em sua máquina de costura, próxima da janela. É uma tarde tranquila onde o som da máquina é ouvido junto  ao som dos quintais próximos. Uma casa onde todos os dias ao amanhecer ouvia-se o som de galos cantando, não apenas um solitário como hoje, mas vários tentando  se sincronizar como numa orquestra que ensaiava. De onde estou vejo o rosto belo de minha mãe, concentrada no pano a sua frente, um cacho de seu cabelo cai sobre os olhos e ela o desvia distraída tentando finalizar em linha reta sua costura.

        É um outro tempo, um tempo de felicidade, de paz, onde eu crescia tranquila numa família simples, na periferia de minha cidade. Numa casa com quintal, pássaros e plantas onde eu permanecia a maior parte do tempo quando chegava da escola. Todos esses pensamentos, imagens, sons, lembranças e até cheiros, passaram rapidamente pela minha cabeça. Mas passaram e me vi de novo em frente ao meu notebook, continuo então a responder e-mails, verificar sistemas, a rotina do meu teletrabalho. O galo está mudo, foi meu gatilho, o acesso rápido a uma das gavetas de minha memória. A vida segue. Em 2021 cheia de incertezas, ainda sem vacina para uma terrível ameaça, um vírus nunca antes visto. Seguimos com nossas rotinas em meio a tudo isso. De vez em quando sendo salvos por nossas memórias.

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